Publicado em 05.09.2008, no Jornal do Commercio
"Com a mão trêmula como quem comete um crime." O crime trêmulo da fome. É assim que Josué de Castro descreve seu personagem retirante,Zé Luís que, deserto de comida e consciência, rouba queijo de coalho para matar aquela que o matava. Está escrito no livro Homens eCaranguejos. Wandevergue também tremia quando decidiu roubar queijo, não de coalho, mas do-reino. No vertiginoso raciocínio de um homem jáembriagado de bebida e raiva, aqueles dois potes, que custavam juntos R$ 85, renderiam dinheiro suficiente para alimentar as sete crianças que os esperavam em casa. Wandevergue, assim como Zé Luís, foi pego em flagrante. E isso não está escrito em livro algum, mas registrado nos jornais, nas TVs, nas rádios.
Há exatos 50 dias, Wandevergue foi notícia após roubar queijo em um supermercado no Recife para tentar vendê-lo e, assim, voltar para casade mãos cheias, ainda que trêmulas. Terminou preso e, de seu relato de fome, daquela que poucos admitem falar em voz alta, ganhou compaixão e liberdade após seis dias de prisão. Hoje, Wandevergue ainda vive abastecido pela solidariedade de vizinhos que ajudam a alimentar a família com feijão, leite, bolachas e queijo. Mas os pressupostos embutidos na caridade incomodam o flanelinha.
"Eu vou endoidar senhora", profetiza em um não raro instante de explosão. Wandevergue estoura para fora, em acessos de auto-afirmação, e estoura para dentro, deixando muitas vezes um concentrado silêncio tomar conta da conversa. Até seis meses atrás, o flanelinha, os filhose a mulher grávida dormiam em papelões e um teto ora de chuva, ora de desconsolo. Nunca de estrelas.
Em uma dessas noites, o carro da assistência social parou.
– Essa é sua família?
– É sim senhor.
– Qual o nome dos seus filhos?
– Fubá, leite, feijão, arroz, açúcar...
– E qual o seu nome?
– Eu sou ninguém.
– Você é louco?
– Eu não sou louco não, não tá vendo que todo mundo tem fome aqui?
Mas o assistente social foi embora. Parecia não entender de metonímias. E o morador da rua, sem jamais ter ouvido falar em figuras de linguagem, engoliu seco novamente...
Fonte: Em dia com A Cidadania
Nenhum comentário:
Postar um comentário